Começo agora uma série de postagens acerca do "movimento calvinista" existente na Igreja Evangélica Assembleia de Deus no Brasil. Para início dessa série de postagens, escolhi uma entrevista cedida pelo pastor Geremias do Couto ao Blog Teologia Pentecostal, do irmão Gutierres Fernandes Siqueira. Eu já postei aqui neste blog uma matéria sobre o assunto (clique aqui para ver). Todavia, diante da séria realidade do fato, vou tratar com mais profundidade a questão em pauta. Na parte final desta série, exporei o meu posicionamento acerca da teoria calvinista.
Assembleiano e calvinista convicto: uma entrevista com Geremias do Couto
Por Gutierres Fernandes
Siqueira
[...]
Hoje o teólogo Geremias do
Couto nos concede uma entrevista sobre o impacto do crescente calvinismo nas
Assembleias de Deus e entre pentecostais de maneira geral, normalmente
identificados com o Arminianismo. Ele conta a própria experiência como um
pentecostal, pastor assembleiano e calvinista convicto. Como será essa relação?
Geremias do Couto em palestra.
Um dos poucos pastores assembleianos de expressão nacional assumidamente calvinista. |
Geremias do
Couto é pastor na Assembleia de Deus em Teresópolis (RJ), mestre em teologia
pelo conceituado Gordon–Conwell Theological Seminary (GCTS) onde foi
aluno do conhecido exegeta assembleiano Gordon Donald Fee, autor do livro “A
Transparência da Vida Cristã” e coautor do obra “Teologia Sistemática
Pentecostal”, ambos publicados pela CPAD (Casa Publicadora das Assembleias de
Deus). Foi um dos editores da famosa Bíblia de Estudo Pentecostal (BEP)
do norte-americano Donald Stamps. Couto também presidiu o Projeto Minha
Esperança Brasil da Associação Evangelística Billy Graham.
Blog Teologia Pentecostal: Como pastor das Assembleias de Deus, conhecido escritor entre os assembleianos e de uma família de tradição pentecostal, como foi aderir ao Calvinismo? Qual a causa e a circunstância dessa guinada teológica?
Geremias do Couto: Creio que a expressão “aderir” é muito simplificadora, sobretudo para quem constrói a sua história de vida à luz da coerência. Isso foi mais resultado de um processo iniciado ainda na minha adolescência do que uma mudança propriamente dita. Sempre fui questionador e ledor voraz desde quando ainda era criança. Fui da época em que se marcavam os versículos a lápis de cor durante a leitura. Mantenho ainda o mesmo hábito.
Blog Teologia Pentecostal: Como pastor das Assembleias de Deus, conhecido escritor entre os assembleianos e de uma família de tradição pentecostal, como foi aderir ao Calvinismo? Qual a causa e a circunstância dessa guinada teológica?
Geremias do Couto: Creio que a expressão “aderir” é muito simplificadora, sobretudo para quem constrói a sua história de vida à luz da coerência. Isso foi mais resultado de um processo iniciado ainda na minha adolescência do que uma mudança propriamente dita. Sempre fui questionador e ledor voraz desde quando ainda era criança. Fui da época em que se marcavam os versículos a lápis de cor durante a leitura. Mantenho ainda o mesmo hábito.
Embora se diga
que a AD seja tradicionalmente arminiana, pelos muitos de seus escritos em
nossos órgãos oficiais, na prática, na rotina dos nossos púlpitos, regra geral,
a verdade é que sobrepujava uma tendência para o semipelagianismo, sem que os
pastores soubessem até o que isso significa. É só nos lembrarmos dos antigos
“cultos de doutrina”, onde o que menos tínhamos era doutrina, mas a insistência
na pregação dos usos e costumes, de forma opressora, com o risco de “perder” a
salvação, se incorrêssemos na quebra de uma daquelas regras, mesmo que fosse
jogar bola de gude ou soltar pipa. Cresci nesse ambiente em que durante o dia
me via “perdendo” a salvação várias vezes, com drama de consciência, pois não
conseguia cumprir à risca o que era necessário para manter-me salvo. A noite,
tentando dormir, sofria com medo de ir para o inferno, se morresse, por causa
das falhas cometidas.
A primeira vez em
que se ensinou sobre a diferença entre doutrina e costumes em nossa igreja foi
através do pastor Antonio Gilberto. Eu tinha por volta de 13 anos. Nos dias
seguintes foi só confusão. O ministério foi até reunido, de forma protocolar,
para discutir a questão. Para mim, no entanto, tratou-se de um divisor de águas
até porque, em conversa particular com o conhecido mestre, enquanto almoçava
com ele no restaurante, pude lhe expor um problema que então me atormentava: a
masturbação. Ali, com a sua sabedoria, começou a descortinar-se para mim, como
numa penumbra, o sentido da verdadeira salvação. Mas se contasse o problema
para um dos presbíteros da igreja, seria sumariamente excluído da igreja. Pelo
menos era o que eu pensava pela forma como éramos ensinados a viver a vida
cristã. Ora, isso nunca foi arminianismo, mas com bastante complacência
identifico como semipelagianismo: a salvação obtida pelo esforço humano.
Com o tempo
passei a ter contato com as doutrinas da graça, a ler os mesmos livros citados
pelo pastor Silas Daniel em sua entrevista, além de alguns outros, a fazer
perguntas e mais perguntas, em diálogos imaginários com os autores das
respectivas obras, com lógica e método na exposição do raciocínio, sem nunca
abandonar a Bíblia, até que abraçar a fé reformada tornou-se algo natural, sem
que houvesse necessidade da qualquer ruptura “explosiva”.
TP: Na sua opinião, quais são os motivos que levam inúmeros jovens assembleianos a abraçarem o Calvinismo e a cosmovisão presbiteriana aqui no Brasil?
GC: Algumas razões já apresentei de forma implícita na resposta anterior, como a predominância do semipelagianismo em nossos púlpitos. Esse era o “arminianismo”que nos ensinavam. Mas convém sinalizar que a liderança assembleiana, com as honrosas exceções de praxe, sempre teve uma atitude refratária à educação teológica formal. Temos de ser realistas e encarar o fato sem maquiagem. Não éramos estimulados ao estudo acadêmico. João Kolenda Lemos e Ruth Dorris Lemos pagaram elevado preço para implantar o IBAD – Instituto Bíblico das Assembleias de Deus, a primeira instituição do gênero nas Assembleias de Deus, localizado em Pindamonhangaba, SP. É só folhear as páginas do Mensageiro da Paz do período, que serão encontrados artigos contrários e favoráveis ao ensino formal. Aliás, essa era uma qualidade que precisa ser exaltada. O Órgão Oficial assembleiano abrigava esse debate. Hoje, infelizmente, isso não mais acontece.
TP: Na sua opinião, quais são os motivos que levam inúmeros jovens assembleianos a abraçarem o Calvinismo e a cosmovisão presbiteriana aqui no Brasil?
GC: Algumas razões já apresentei de forma implícita na resposta anterior, como a predominância do semipelagianismo em nossos púlpitos. Esse era o “arminianismo”que nos ensinavam. Mas convém sinalizar que a liderança assembleiana, com as honrosas exceções de praxe, sempre teve uma atitude refratária à educação teológica formal. Temos de ser realistas e encarar o fato sem maquiagem. Não éramos estimulados ao estudo acadêmico. João Kolenda Lemos e Ruth Dorris Lemos pagaram elevado preço para implantar o IBAD – Instituto Bíblico das Assembleias de Deus, a primeira instituição do gênero nas Assembleias de Deus, localizado em Pindamonhangaba, SP. É só folhear as páginas do Mensageiro da Paz do período, que serão encontrados artigos contrários e favoráveis ao ensino formal. Aliás, essa era uma qualidade que precisa ser exaltada. O Órgão Oficial assembleiano abrigava esse debate. Hoje, infelizmente, isso não mais acontece.
Outra questão a
ser considerada é que a literatura pentecostal assembleiana, no Brasil, também
era parca. Tínhamos poucos livros, a maioria de natureza devocional, mas
praticamente nenhum de caráter acadêmico. Na verdade, uma de nossas maiores
igrejas não adotava sequer a revista da Escola Dominical. A primeira obra
sistemática de que me lembro, traduzida do inglês, foi “As Grandes Doutrinas da
Bíblia”, de Myer Pearlman, que se tornou o livro de cabeceira dos pastores
assembleianos. Já aqueles que conheciam o idioma de Shakespeare eram
privilegiados e se tornavam a nossa fonte de conhecimento, visto que não
tínhamos acesso a essas fontes primárias. Mas como os tempos mudam, houve
também mudanças positivas, com a chegada dos seminários, faculdades teológicas,
a publicação abundante de livros, as redes virtuais etc. Até mesmo a CPAD
tornou-se a maior editora da América Latina, publicando também diversas obras
de autores reformados, sem que eu tivesse qualquer influência nisso durante a
minha gestão como Diretor de Publicações. Elas começaram a ser publicadas em
fase posterior.
No vácuo que
acabei de mencionar, de um lado, e a explosão das fronteiras da educação
teológica formal, de outro, além da inexistência de obras em português tratando
do arminianismo de forma consistente, nossos jovens começaram a ter contato com
a literatura e a teologia reformadas, até mesmo através de professores de
origem reformada em cátedras de nossos seminários e faculdades, criando assim
todas as condições para o surgimento desse interesse. Não acredito que tenha
sido algo orquestrado e desconheço que haja pessoas fazendo proselitismo,
querendo “calvinizar” as Assembleias de Deus. Isso é forçar a barra. Mas aonde
chego, encontro jovens e pessoas já maduras na idade, com boa formação, que
acreditam na doutrina reformada, sem qualquer vestígio de proselitismo, e não
criam nenhum problema nas igrejas onde professam a fé. Não acho que isso tenha
sido um mal. Ao contrário, isso trouxe o nosso meio de forma mais efetiva o
“espírito bereano” de cotejar a Escritura em busca de seu respaldo (ou não)
para o que está sendo ensinado. Vejo também de modo muito positivo a
aproximação entre a fé reformada e a fé pentecostal, partilhando a mesma
trincheira em defesa das verdades do Evangelho.
TP: É visível uma reação arminiana entre os pentecostais. Ainda pequena, é bem verdade, mas com um potencial fantástico. Todavia, seria uma reação tardia?
GC: A rigor, a reação arminiana entre os pentecostais é tímida, na defensiva, a não em discussões de grupos no Facebook, onde mais predomina a carnalidade do que um debate sério e consistente entre as duas correntes. O próprio pastor Silas Daniel, na entrevista concedida ao blog, afirmou que sua manifestação era particular, embora contasse com a aprovação da direção superior da CPAD por tratar-se de uma revista institucional destinada aos obreiros da igreja. Mas é bom que essa reação aconteça e posso analisá-la sob duas perspectivas:
TP: É visível uma reação arminiana entre os pentecostais. Ainda pequena, é bem verdade, mas com um potencial fantástico. Todavia, seria uma reação tardia?
GC: A rigor, a reação arminiana entre os pentecostais é tímida, na defensiva, a não em discussões de grupos no Facebook, onde mais predomina a carnalidade do que um debate sério e consistente entre as duas correntes. O próprio pastor Silas Daniel, na entrevista concedida ao blog, afirmou que sua manifestação era particular, embora contasse com a aprovação da direção superior da CPAD por tratar-se de uma revista institucional destinada aos obreiros da igreja. Mas é bom que essa reação aconteça e posso analisá-la sob duas perspectivas:
1.
Se o
arminianismo for ensinado tal como Armínio o formulou ou com as características
wesleyanas, isso permitirá que muitos pentecostais percebam o quão diferente é
do semipelagianismo que ainda predomina em muitos púlpitos assembleianos. Quem
fez essa excelente observação foi o irmão Clóvis Gonçalves, a quem considero o melhor expoente da fé reformada no meio
pentecostal. Ao descobrir isso, verão também que o calvinismo não é o tal
“monstro” que alguns tentam criar em suas cabeças.
2.
A outra
perspectiva é que se o intuito for cercear a liberdade cristã ou promover uma “caça às bruxas”, a reação já
nasce com espírito carnal e de forma tardia, pois as Assembleias de Deus,
atualmente, enfrentam sérios problemas institucionais, de gravíssima monta,
diga-se de passagem, além de estarem extremamente
fragmentadas, que lançar um debate com esse propósito acabará por dilacerar o pouco de unidade que
resta. Goste-se ou não, o número de reformados, hoje, é muito grande no meio
assembleiano. Isto sem qualquer proselitismo.
TP: Alguns pastores assembleianos reagem ao Calvinismo tratando-o como
"vento de doutrina", "novidade perniciosa",
"heresia" e outros adjetivos não amigáveis. Como você responde
aos seus colegas de ministério?
GC: Radicais há
de ambos os lados. Sob o guarda-chuva do calvinismo abrigam-se diferentes
tendências. O mesmo pode-se dizer do arminianismo. Até o Teísmo Aberto encontra
guarida sob o sistema, como deixa explícito Roger Olson em seu livro: Teologia
Arminiana – Mitos e Realidades, e teve como um de seus principais expoentes
Clark Pinnock, um dos autores da obra: “Predestinação e Livre-Arbítrio”, ao
lado de Norman Geisler. Mas neste ponto, prefiro ficar com a posição que o
pastor Silas Daniel expressou em sua entrevista, ao afirmar que o calvinismo
honra a Deus tanto quanto o arminanismo – ele enumera as razões – e que em suas
leituras de obras reformadas sempre apreciou a “paixão por Deus, pela pureza,
pela santidade de Deus, pelo viver para a glória de Deus” de seus autores.
Só me soa
contraditório, depois dessa afirmação extremamente conciliadora, propor que os
calvinistas pentecostais deixem a Assembleia de Deus e busquem outra
denominação, onde a fé reformada seja o cerne da doutrina. Aí acabou por jogar
fora a água da bacia com o bebê e tudo. De minha parte, sempre cri que
reformados e arminianos podem dar-se as mãos como cristãos, sem contradição
alguma, sem ataques e agressões mútuas, que nada engrandecem a Deus e edificam
o Reino. A título de ilustração, ontem mesmo vi no Facebook um arminiano
chamando a fé reformada de demoníaca, enquanto um calvinista usava o mesmo
epíteto para o Arminianismo. Há necessidade disso? É cristão agir dessa forma?
Se ambas honram a Deus – repito – por que se digladiar tanto ao invés de
lutarmos em defesa do evangelho. Fico com um pé atrás se essa reação
“particular” não estaria sendo movida por segundas intenções, uma espécie de
cortina de fumaça para encobrir graves problemas que a instituição assembleiana
enfrenta.
TP: Como calvinista convicto você sempre mantém uma postura
conciliatória. Sendo assim, qual ponto positivo você poderia apontar no Arminianismo?
GC: Se estamos
falando de arminianismo clássico ou wesleyano, encontro os mesmos pontos
positivos que o pastor Silas Daniel encontrou na fé reformada. Mas em se
tratando da “mecânica da salvação, prefiro ficar com a essência do aforismo
peculiar ao veterano pastor José Isaías Neto, vinculado ao Ministério do
Belenzinho, em Sorocaba, SP, que do alto dos seus 80 anos, grande parte deles
vivido ao lado de Cícero Canuto de Lima, assim afirma: “Não sou calvinista , nem
preciso de Calvino para ir ao céu, mas em questão da salvação Calvino estava
100 % certo”.
TP: E a Assembleia de Deus é
tradicionalmente arminiana, embora lhe falte a formalização de uma confessionalidade. É
possível ser calvinista e assembleiano? Não seria uma distorção de identidade?
GC: Já
expressei o meu ponto de vista sobre a questão logo na primeira pergunta.
Embora tradicionalmente arminiana, o que sempre predominou nos púlpitos da AD,
regra geral, foi o semipelagianismo. Dito isto, vamos a algumas indagações:
todos os arminianos são pentecostais? São todos cessacionistas? Ora, assim como
há arminianos cessacionistas e arminianos pentecostais, não vejo dificuldade
alguma em que haja calvinistas pentecostais, assim como há calvinistas cessacionistas.
Em relação à identidade assembleiana, cabe refletir: qual? A do reteté, com
suas expressões cultuais estranhas ao genuíno pentecostalismo, como descrito em
1 Coríntios 12, 13 e 14? A do neopentecostalismo, que grassa em nosso meio a
olhos vistos, com a introdução de ritos judaicos na liturgia? A do liberalismo,
que já encontra eco em diversas cátedras de alguns dos nossos seminários? A do
engessamento institucional e político-religioso, que tem devastado a unidade da
igreja em nosso país? Ora, se o calvinismo honra a Deus, como bem expressou o
pastor Silas Daniel, não vejo porque a presença de reformados na Assembleia de
Deus, que não vivem por aí a fazer proselitismo, possa ferir a identidade da
denominação.
Fonte: Teologia Pentecostal.
Ótima entrevista.
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